Quando o arauto atendeu o telefone, logo
percebeu que era a voz de Cortez do outro lado.
_ Tenho novidades _ ele disse.
_Sobre o quê?_ perguntou o jovem.
_ Devon Mattheus acaba de ser detido pela
polícia, mas antes disso, tive uma conversa com ele; esclareci alguns pontos e
consegui uma informação importante.
_ Qual?
_É sobre o carrasco. O que você fez com
ele quando lutaram na casa dos Ramos?
A pergunta não fazia o menor sentido e
Alam não sabia o que responder além do óbvio.
_Não fiz nada com ele, quero dizer, creio
que o feri de algum modo, mas acho que não foi nada realmente grave. Por quê?
_ Segundo Mattheus, o carrasco está
inutilizado.
Mas o que será que Juan queria dizer com
aquilo, Alam ainda não entendia.
_ Seja claro.
Cortez sorriu um pouco ao telefone e
finalmente desandou a falar:
_ Mattheus disse que recebeu uma pequena
tarefa de Draek. Ir até uma determinada residência e entregar uma mensagem para
o carrasco, mas chegando lá acabou surpreso por encontrá-lo cego.
_Cego!_A reação de Alam foi instantânea._
Mas como assim cego?
_ Algo aconteceu com ele e se não foi você
então quem foi?
Alam não se lembrava de ter feito algo que
pudesse haver tirado a visão do carrasco, mas também não tinha a certeza de que
algo alheio a eles não tinha acontecido e prejudicado os olhos do adversário.
Houve uma hora em que a fumaça e a fuligem tinham tomado conta de todo o
ambiente, o teto estava quase vindo abaixo e Alam só conseguia pensar em fugir
daquele lugar em chamas.
_Não sei. Mas acho que o próprio fogo pode
ter afetado a visão dele; na verdade pode ter sido qualquer coisa, não sei.
Cortez soltou um som indistinguível ao
aparelho e falou:
_ Você é um garoto de muita sorte.
Sorte era uma palavra que tinha perdido
todo o sentido para Alam, mas quando estava em combate contra o carrasco tinha
percebido algo diferente, algo estranho no comportamento dele, de fato, era
como se ele não estivesse totalmente concentrado no confronto, mas pensou não
ser nada de mais.
_ A sorte não teve nada a ver com isso_
rebateu o arauto.
_ Pois então parece que você andou
agradando alguém lá no céu; as coisas sempre acabam cooperando para lhe
favorecer.
Embora o rapaz não concordasse totalmente
com o que o outro estava dizendo, não podia negar que certos fatos estavam
ocorrendo em seu favor; no fundo ele cria que era realmente uma movimentação
divina que ainda não compreendia, mas era muito grato.
_ Então vou aproveitar para resolver a
última pendência que falta._ revelou o arauto._ Lembre-se da promessa que me
fez.
_ Eu me lembro; sou um homem de palavra.
Você vai atrás de Donovam?
_ Sim.
_ Então deve saber que ele não está aqui
na casa das labaredas, ele desapareceu, assim que Vesúvio foi interpelado;
certamente ele vai deixar o mestre responder sozinho pela tentativa de me matar.
_ Eu encontro ele.
Alam desligou o telefone e pensou por um
minuto apenas, antes de saber o lugar onde Draek podia estar; sabia que a casa
dele ficava situada longe de tudo e era o principal lugar, talvez o mais seguro,
porém era óbvio demais, Santorini ou qualquer um dos semi-mestres podia mandar
sombras ou assassinos para lá de modo a capturá-lo, embora fosse pouco provável
que qualquer um deles conseguisse vencer as forças sobrenaturais de Donovam.
Naquele momento uma frase dita pelo antigo
professor brotou na mente do jovem, como um relâmpago:
“Se mudar de idéia quanto a estar do meu
lado sabe onde me encontrar; vou ficar no Palácio do dragão”._ Donovam disse no
dia do primeiro confronto com o carrasco naquele estacionamento no centro da
cidade.
O Palácio do dragão era uma casa de
proporções modestas se comparada com a verdadeira residência dele, também
idealizada por Donovam e toda a arquitetura do lugar copiava exatamente um
templo do oriente dedicado à filosofia Zoroástrica, dos chamados sacerdotes do
fogo eterno. Quando visto por fora não se podia saber, mas Donovam mantinha
dentro do templo ou da casa que ele gostava de chamar de palácio, uma pira
acesa constantemente, ele sempre cuidava para que a chama jamais se apagasse e
por muitas vezes o próprio Alam foi o encarregado de fazer tal serviço.
Aquele era um lugar de refúgio máximo para
o antigo professor, ninguém a não ser o arauto e mais uns poucos partidários
sabiam da existência daquele lugar e tampouco a localização. Lá estava a maior
parte de todas as coisas de valor que Donovam realmente possuía; itens antigos
trazidos da Grécia, da Turquia e do Irã, utensílios da casa de Prometeu, assim
como uma vasta literatura acerca das várias teorias sobre a formação das casas
de magia que culminaram com a estruturação da ordem do fogo.
Donovam por vezes dizia a todos que tinha
de fazer uma viagem de negócios, qualquer, mas na verdade ficava nesse lugar e
de lá comandava sorrateiramente todas as ações que julgasse oportunas na cidade
sem que ninguém pudesse imaginar que ele estava por trás de tais fatos.
Alam não tinha dúvida, sabia que com a
prisão de Devon Mattheus e a interpelação de Vesúvio, o cerco certamente se
fecharia sobre Donovam e este passaria alguns dias escondido no seu refúgio de
onde poderia acompanhar mais de perto todo o desenrolar dos fatos sem ser
percebido; caso as coisas não andassem de uma forma que lhe fosse agradável aí
então ele poderia viajar para fora do país e repensar sua estratégia, mas conhecendo
bem o coração de pedra de Draek; sabia que essa seria sua última alternativa.
***
O carro parou no lugar; uma casa simples
nas dimensões, com uma espécie de espelho d’água circular bem na frente,
algumas colunas, uma única porta na frente, duas janelas e também estruturas
pequenas sustentadas por balaústres em ambos os lados da casa. Havia ao redor
muitas árvores bem cuidadas e nenhum símbolo que pudesse ser lido como místico.
Ele caminhou pelo terreno frontal olhando
tudo o que podia e finalmente viu estacionado ao lado da construção o Bugatti;
uma das paixões do dono da casa.
_ Eu estava esperando você._ A voz surgiu
atrás de Alam que se virou; era Donovam.
O professor estava diferente, seu cabelo
sempre alinhado estava desgrenhado, a gravata sempre acertada, agora estava
desfeita e os botões da camisa, todos abertos.
O mestre continuou falando:
_ Pensei que você não fosse vir, por um
momento achei que tudo estivesse perdido, mas agora sei que não. Agora sei que
você ainda está comigo.
Alam não sabia nem o que dizer nem o que
fazer, aquele homem já era muito perigoso em seu estado normal, e quão mais
perigoso estaria naquele momento em que assistia suas pretensões de chegar ao
poder absoluto indo por água abaixo.
Donovam Disse:
_ As coisas estavam todas muito bem
encaminhadas; você devia ter morrido quando mandei que deixassem seu corpo no
rio, mas você voltou; depois encarreguei Phyros de fazer o serviço, mas aquele
incompetente não conseguiu; você o cegou. Vesúvio devia ter matado Cortez e eu
estaria com caminho livre para finalmente chegar ao poder supremo. Mas algo
aconteceu, alguma variável que eu não considerei.
Alam finalmente falou:
_ Eu salvei Cortez do envenenamento.
_ Sim é claro. Eu devia ter imaginado,
agora aquele pseudo-mago tem vantagem contra mim, os antigos executarão uma
punição exemplar contra Vesúvio e isso para me atingir.
_ Donovam; o equilíbrio foi rompido, e
eles vão querer recuperá-lo; suas tramas nunca foram bem vistas, mas sempre
foram permitidas desde que nunca viessem a público; principalmente uma
tentativa de matar um alto membro.
Donovam caminhou na direção da casa
novamente.
_ Como eu não percebi antes; meu maior
ponto fraco sempre foi você, meu aluno, meu braço direito durante anos.
_ E o que vai ser agora?
_ Agora eu vou iniciar o confronto_
Donovam riu debilmente_ Depois destes atos tolos, ninguém vai depositar
confiança em mim novamente; essa hora Santorini já deve ter arrancado de Devon
tudo o que ele sabe e o que não sabe também. Fui avisado das acusações que
estavam recaindo sobre mim; é incrível, mas ainda possuo partidários leais,
sinto-me como Napoleão exilado na ilha de Santa Helena.
Algo estava muito errado ali, Donovam
estava usando de demasiada teatralidade nas palavras, aquilo não era do feitio
dele. Já haviam passado, juntos, por situações difíceis e jamais o professor se
comportara daquela forma estranha; ele sempre fazia questão de manter o ar
arrogante, nunca deixaria inimigo algum pensar, o mais breve que fosse, que ele
não tinha o total domínio das coisas.
_ Porque todo esse teatro?_perguntou Alam.
Donovam continuava andando e olhou
rapidamente sobre os ombros, sem responder; entrou na casa e deixou a porta
aberta.
Alam olhou para o céu antes de seguir o
outro, não tinha muitas escolhas ali; devia colocar um fim em sua relação com o
mentor para que pudesse viver pacificamente o restante de sua vida, de
preferência ao lado de Eliana.
Ao entrar na casa o Jovem disse:
_ Há duas saídas para você. Primeiro você
pode se entregar e receber a punição da ordem, Cortez vai denunciá-lo também à
justiça, se já não o fez; em breve você será uma pessoa procurada e vão querer
explicações. Creio que mesmo um homem em sua posição e com toda a sua fortuna
não está acima da lei.
_ Você sempre teve princípios muito fortes
que eu não consegui quebrar_ Respondeu Draek_ E escrúpulos também; essas coisas
são péssimas para um mago; você nunca esteve disposto a fazer o que era
preciso. Acho que por isso deixamos de nos entender.
_ E eu deixei de ser mago. Para sempre.
_ Serei proibido de praticar a magia;
bando de tolos, e preso, encarcerado por anos. Prefiro morrer a submeter a
minha posição a um julgamento presidido por pessoas cuja autoridade não
reconheço. Meus inimigos vão se levantar de todas as partes, todos vão querer
um pedaço nessa empreitada. Não fui tão longe para perder tudo de uma única
vez.
Dentro da sala completamente vazia, ao
contrário de outrora, estava no centro a pira onde o dono do lugar mantinha
aceso o fogo eterno; lá estava ele, bruxuleando, crepitante como se tivesse
vida própria.
No chão em ambos os lados da pira Donovam
tinha colocado duas espadas; uma era a antiga bengala e outra uma espécie de
sabre com lâmina serrilhada na ponta.
Era uma sala suficientemente grande e
vazia para que um combate corpo a corpo fosse realizado ali dentro e ao fundo
uma pequena mesa mantinha sobre ela uma garrafa de vinho e dois cálices de
cristal, outra das paixões do Dragão do Norte.
_ Não precisa ser assim_ falou o ex-aluno_
Você pode escolher desistir de tudo; fugir, ir embora, se exilar em outro país
e tentar viver uma vida comum; use sua inteligência para o bem, procure
beneficiar pessoas; aproveite a genialidade que Deus lhe deu para tornar o
mundo um lugar melhor, onde ordens secretas não terão tanta ação quanto têm
hoje em dia. Essa é sua segunda opção. Vá para o Brasil, desligue-se de tudo,
seja uma nova criatura.
O fato era que Alam estava preparado para
lutar se fosse o caso, mas um sentimento de pena com relação a Donovam estava
em seu coração; sabia que aquele homem tinha jogado a vida fora chafurdando
numa realidade sinistra e obscura, inebriado pelo aroma da magia e embriagado
pelo gosto do poder e da maldade, mas o jovem acreditava que havia algo maior
do que aquilo, algo que seria capaz de perdoar todas as loucuras e maldades do
professor, se este assim o quisesse.
Donovam foi em direção à mesa e serviu
para si um dos cálices com vinho; em seguida bebeu tudo de uma única vez.
_ Guarde sua misericórdia para a família
que o acolheu, ou para as pessoas não iniciadas que caminham pelas ruas; eu não
preciso dela. vou devolver as coisas a seu “Status quo” e começarei fazendo o
que devia ter feito quando a batalha na torre vermelha terminou. Em seguida vou
alcançar o máximo que um homem já conseguiu, vou me igualar aos maiores nomes
da ordem, serei semelhante ao próprio Prometeu, vou transcender, deixarei de
ser um homem mortal e serei um semi-deus imortal.
O arauto não compreendia mais o que
Donovam estava dizendo, sabia apenas que teria que se defender como nunca
antes, pois jamais foi capaz de vencer aquele oponente.
_ O que significa tudo isso?
_ Existe lugares onde um homem não pode
chegar, há almas em que uma pessoa não pode tocar e corações que eu não posso
inflamar; não assim, não como um mero mortal, não preso a esta forma física.
Mas tudo isso é possível para um mito, uma lenda, um mártir, e eu decidi me
tornar um após matar você, deixarei o convívio dos homens e me sentarei no
panteão dos deuses do fogo. Meu nome será lembrado eternamente, e aqueles
partidários leais a mim levarão minhas batalhas adiante, porão em prática
minhas idéias e dominarão toda a casa do fogo com mão de ferro em meu nome. O
que não consegui como homem conseguirei como um mito.
Muitas e muitas vezes Alam tinha visto
coisas semelhantes aquela acontecer, alguém já tinha dito uma vez que o poder
corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente. Donovam estava totalmente
fora de si, daria cabo da própria vida para que sua maldade ganhasse força
pelas mãos de outros magos espalhados pelo mundo.
_ Eles farão estátuas em minha homenagem e
me adorarão, escreverão livros ao meu respeito, estudarão minhas técnicas e
minhas idéias e ideais se tornarão doutrina; rapidamente eu serei o expoente
máximo dentre todos e em todos os tempos, o único homem que foi capaz de
deificar a si mesmo.
O fogo na pira, bufou e mudou de cor,
passou rapidamente do vermelho para o laranja, azul, verde e voltou ao normal.
Donovam estava apenas testando seu controle sobre as labaredas.
_ Vamos começar, o veneno logo vai fazer
efeito.
Finalmente o arauto percebeu o propósito
do vinho na sala, era a forma com a qual Donovam mais gostava de eliminar seus
adversários e a estava usando nele mesmo.
_Você ficou louco! Tomou seu próprio
veneno!?
Donovam lançou mão da espada em forma de
bengala que estava no chão, desembainhou mostrando a lâmina fina, rija e letal;
sacudiu-a no ar em movimentos circulares como que testando seus movimentos. A
lâmina provocou um fino silvo enquanto cortava o ar.
_É chegada a hora._ Disse Donovam_ Venha
até mim agora! Eu ordeno!
Ele não estava falando com seu aluno e sim
com o fogo sobre a pira; uma seguência de explosões crescentes se fez presente
e o fogo saltou da pira para o chão em uma velocidade tão assombrosa que Alam
não teve tempo de fazer coisa alguma. Foi arremessado também ao solo.
Ao mesmo tempo, aquele som metálico surgiu
espocando em explosões por todos os lados, fogo não natural conjurado, estava
atravessando a barreira da realidade e vindo em socorro do mestre.
O calor rapidamente excedeu o que tinha
acontecido na casa da família Ramos; as memórias da torre vermelha em chamas
retornaram para a mente de Alam e ele não teve outra alternativa a não ser
correr até a outra espada no chão. O rugido das chamas era ensurdecedor e em
segundos a mesa ao fundo era apenas um amontoado de brasas vivas, o vinho
também já não existia mais.
_ Fascinante; com essa intensidade você já
devia ter queimado_ Disse Draek observando_ seu controle elemental melhorou
bastante durante o tempo em que esteve fora. Pelo visto andou praticando.
O professor avançou sobre o aluno com
movimentos rápidos e o jovem por sua vez cuidava de esquivar e defender usando
a outra lâmina. Mas estava abismado, sabia que a intensidade do fogo era
superior se comparada com as outras vezes, mas ele não estava usando de nenhum
tipo de controle elemental ou artifício místico; o fogo não o estava
incomodando tanto quanto antes, mas ele não fazia esforço algum para se manter
imune.
Com um movimento de mão o professor
intensificou ainda mais o calor do ambiente. Donovam não tinha muita habilidade
com sabres e espadas, tampouco no combate corpo a corpo, mas a magia era seu
ponto forte.
Queria usar as técnicas de confronto para
criar uma distração enquanto atacava de verdade usando tudo o que tinha de
maneira antinatural.
_ Donovam seja sensato, pelo amor de Deus!
Não precisamos continuar esta batalha; converta seu coração, esqueça o passado,
abandone a ordem._ Alam dizia aquelas palavras, mas tinha a certeza de que não
estava sendo ouvido pelo outro, entretanto, tinha que tentar, não podia deixar
que um homem, mesmo sendo quem era, desce fim à própria vida; afinal era uma
vida e somente isso importava.
Enquanto falava, o arauto não conseguia se
concentrar totalmente em se desviar dos ataques constantes do professor e a
lâmina da espada do dragão lhe atingiu o braço, estava quente como se fosse
feita de fogo puro; o metal aquecido estava começando a ganhar uma tonalidade
luminosa. O corte foi profundo e praticamente cauterizou instantaneamente.
O jovem soltou a sua espada no momento em
que foi golpeado e começou a sentir os efeitos do calor sobre-humano e das
condições extremas do ambiente; era como se ambos estivessem dentro de um forno
incinerador. A temperatura devia estar quase passando dos cem graus,
facilmente, e Draek não parecia ter a intenção de parar.
Comentários
Postar um comentário