Àquela hora da madrugada as ruas estavam
vazias e o carro dele rasgava o ar em uma velocidade cada vez mais rápida;
pouco se importava com sua segurança naquele momento e tudo o que desejava era
chegar rápido à casa da família Ramos; não conseguiria suportar mais culpa
sobre sua vida e ainda não estava tão firme em sua fé a ponto de saber lidar
com isso.
Enquanto guiava o veículo ao longo da
Auto-pista 417 Ontário, memórias emergiam em sua mente; memórias de quando tudo
aquilo começou, quando conheceu Donovam ainda no Brasil, em Mesquita, RJ, sua
cidade natal. Depois lembrou de todas as grandes descobertas que havia feito
desde então e das grandes batalhas que travou em nome de uma ordem que só agora
sabia ser uma ordem de assassinos.
Lembrou-se das promessas que foram feitas
a ele, dizendo que alcançaria status e fama cada vez maior, mas não podia
imaginar que tais coisas só fossem adquiridas através do sangue de pessoas e
pessoas inocentes.
O caminho entre a sua casa e a residência
da família Ramos não era assim tão longo, demorava mais ou menos meia hora, mas
na velocidade em que ele dirigia com certeza levaria bem menos tempo, porém a
ansiedade fazia parecer muito mais. Alam pensava que já estava dirigindo há
três horas e tinha a sensação de que o caminho estava cada vez mais longo.
Sem ter o controle de seus pensamentos,
ele começou a ser açoitado pelas lembranças e algumas em particular o chamavam
mais a atenção do que outras.
***
O carro parou novamente em frente à casa
da família Ramos, Alam desligou o motor, mas não saiu do veículo imediatamente,
na verdade, ficou sentado olhando através do vidro e dos espelhos, retrovisor e
laterais; era uma noite muito deserta, somente as luzes dos postes traziam
algum alento para a escuridão natural. A casa de seus amigos estava totalmente
às escuras, mas a porta da frente jazia aberta, estranhamente escancarada; Alam
tinha certeza. Era uma emboscada.
Saiu do carro, não tinha a menor idéia do
que faria, mas sabia que não podia abandonar as únicas pessoas que o tinham
ajudado nos últimos tempos, aquela família tinha demonstrado um amor para com
ele que, desde que deixara o Brasil e a sua própria família, nunca mais tinha
recebido de ninguém, não que as pessoas dos países por onde ele andou não
fossem hospitaleiras, pelo contrário, mas era que ele tinha se fechado de tal
modo para o calor humano que passou todos esses anos sem percebê-lo ao redor.
Um homem saiu pela porta, Alam o conhecia
muito bem, era o executivo de operações da firma de engenharia de Ontário, a
empresa de Donovam. O nome era Devon Clarky Mattheus, um dos mais bem sucedidos
arquitetos da cidade e que sempre nutrira um sentimento negativo com relação ao
jovem aprendiz de Donovam. Clarky queria ser tutelado, mas por ser preterido
decidiu que ia tornar a vida de Alam num verdadeiro inferno e assim foi durante
muito tempo; ele usava de pequenas intrigas e atiçava inimigos políticos de
Donovam contra o arauto sempre que possível, manipulava pessoas com mentiras e
uma falsidade que parecia ser característica natural para ele; às vezes Alam
achava que Devon não podia ser canadense, pois os canadenses eram o povo mais
pacífico e ordeiro que já tinha visto. A única coisa que ele e Alam tinham em
comum era uma grande admiração por Oscar Niemeyer, arquiteto brasileiro que
projetou Brasília, a sede das Nações Unidas em Nova Iorque entre outras grandes
obras. E Frank Gehry, Arquiteto canadense que projetou entre outras obras, o
museu Guggenheim de Bilbao, na Espanha e a Casa Dançante em Praga na República
Checa. Tanto Niemeyer quanto Gehry ganharam o prêmio Pritzker, tido como o
Nobel da arquitetura.
Donovam sempre soube que Devon não
suportava seu aluno, mas não ligava e o próprio arauto nunca se importou com
aquilo, para o jovem Alam tudo não passava de tentativas desesperadas de um
homem engolido e fustigado pela inveja.
Ele se aproximou de Alam como se nada
estivesse acontecendo e estendeu a mão para um “aperto cordial”; o arauto
pensava em como as pessoas conseguiam ser tão dissimuladas, como conseguiam se
envolver em tramas tão sórdidas e sem propósito como aquelas e ainda assim
manter um ar de normalidade na face. Estavam bem no meio da madrugada, dois
homens parados em frente ao jardim de uma casa que foi invadida; Alam queria
correr para dentro da casa e verificar se as pessoas lá dentro estavam bem, mas
Donovam nunca foi um homem comum, ele se considerava um artista e sob vários
aspectos realmente o era, ele não fazia as coisas como deveriam ser feitas, não
pensava como as outras pessoas, não tomava decisões como os outros, nunca agia
de forma semelhante ou convencional, portanto tudo o que estava acontecendo ali
provavelmente já tinha sido meticulosamente planejado por seu antigo mentor,
Alam devia dar os passo certos e manter seu emocional o mais sob controle que
conseguisse.
_ Não vai me cumprimentar_ disse Devon
ainda com a mão estendida no ar.
Alam não respondeu, tampouco estendeu a
mão em retribuição, mas perguntou imediatamente:
_ Onde estão as pessoas que moram nessa
casa? Donovam está lá dentro?
Seria muito mais difícil controlar sua
ansiedade do que ele tinha imaginado, tinha deixado sua frieza emocional dentro
do rio juntamente com seus antigos pecados, ao menos ele cria assim.
Clarky recolheu a mão e sorriu, estava
visivelmente feliz por ser parte da trama que estava causando dor a seu inimigo
declarado.
_ Donovam não está aqui, mas ele quer que
eu lhe de um recado.
Sacou de um envelope do bolso do paletó e
entregou para Alam.
_Tem mais uma surpresa para você lá
dentro, espero que se divirta; nos vemos no futuro; ou talvez não.
_Devon;_disse _ nunca fomos muito
próximos, mas eu lhe peço, abandone tudo isso, não vale a pena. Eu sei que
Donovam é como um ídolo para você, também já o foi para mim, mas as idéias dele
são loucura.
Devon continuava com um sorriso que
misturava feições infantis e diabólicas no rosto.
_ Isso nós vamos deixar a sociedade
decidir, nós logo unificaremos a casa do fogo, hoje algo grande vai acontecer._
ele falava como se também fosse membro da ordem, o que não era verdade, nunca
foi desejo de Donovam tornar Clarky seu pupilo e o fato de ele saber sobre a
unificação e outros planos do antigo mentor só poderia significar uma coisa.
Ele não tinha mais utilidade, seria descartado em breve e levaria tudo o que
sabia para o túmulo. O dragão do norte não tinha escrúpulos e seria
extremamente fácil eliminar aquele bajulador pomposo.
O arauto tentou mais uma vez.
_Devon considere isso um aviso de amigo,
saia daqui hoje, tome o primeiro avião para longe do Canadá, o dinheiro que
você almeja ganhar com isso não cobre o risco que sua vida está correndo.
Lembre-se que era eu quem fazia esse trabalho.
_Não desejo dinheiro_ Clarky enfiou as
mãos nos bolsos_ eu sempre quis poder, controle, dominação; além do mais terei
acesso ao conhecimento da ordem. E se eu tiver que ajudar a eliminar uma
família para que isso aconteça então será feito.
Alam titubeou por um segundo, não sabia se
abria o envelope ou se corria para a casa e foi o que ele fez, abandonou o
outro parado na frente e atravessou o jardim; Clarky não era um guerreiro, não
era um mago, não era nada. Somente um bajulador, uma vontade de consumi-lo com
chamas nasceu no coração do arauto e circulou dentro de seu corpo, mas Clarky
não valia esse tipo de fim, a vida seria seu algoz, não Alam.
Ignorando totalmente o outro que ficou
para trás, o jovem chegou até a porta da casa, as luzes estavam apagadas, mas
pequenas velas vermelhas estavam acesas e formando uma trilha que levava ao
andar de cima através da escada. Alam entrou na casa e procurou o interruptor,
esbarrou com o pé em alguma coisa não muito pesada, mas que ele conhecia muito
bem, abaixou e pegou o artefato. Era sua antiga espada, devidamente embainhada.
Finalmente ele ascendeu às luzes da casa e ficou um tempo de olho em redor.
O fato de sua espada estar naquele lugar
só podia significar uma coisa, Donovam desejava que ele confrontasse alguém e
nenhum outro nome lhe ocorria com tanta certeza quanto Phyros.
Comentários
Postar um comentário